terça-feira, 23 de julho de 2024

  

Projeto Cientifico de Auto-Destruição ou Deus-Nada-Infinito II




A última vez que falei com Desgedder senti que estava meio depressivo. Seu rosto se parecia com o Cavaleiro da Triste Figura, mas sem as ilusões do romântico personagem. Bem ao contrário do quixotesco personagem - que se alimentava de sonhos e moinhos. Seus lábios estavam roxos - quase negros. Sentamos ao redor da mesa do bar.  A nossa conversa foi regada com cerveja e varias doses de whisky. Desgedder estava com ideia fixa na morte, para ele a existência é uma invenção da natureza. Os homens existiriam para que o universo desse gargalhadas da sua fragilidade, da sua arrogância.

D: - Vou abrir o jogo pra ti. 

Alguns minutos de silêncio, algumas doses de whisky e cerveja para amenizar o calor insuportável. Quando voltei a olhar diretamente para D. ele fazia um movimento da mão até boca. Pude ver que ele tinha comprimidos na mão, mas logo desapareceram em direção ao estomago. Retomou o folego e começou a expor seu segredo:

D: - É difícil falar... Bem,  mas parece que você é capaz de guardar segredos e não interferir na vida de terceiros.

- Só interfiro, quando posso ajudar e, assim mesmo, quando há concordância.

Depois de mais uma pausa, D. começou a expor seu segredo: 

D: - Na realidade, estou obsedado - com ideia fixa na morte. Li o livro Tibetano dos Mortos, Bardo Thodol, pensando que teria alguma resposta, um consolo para suportar a realidade tão pesada em que vivo. Mas fiquei ainda mais decepcionado com tanta projeção de ilusões - de que temos uma transcendência após a morte.

- Bem... A filosofia oriental, o budismo tem na sua essência a reencarnação, o Karma e o Darma. Se você não acredita em espiritualidade e transcendência escolheu o livro errado.

-Sim... É verdade. Você sabe que sou ateu, mas  acreditei que encontraria na  sabedoria oriental  um pouco de suporte neste momento caótico...


Desgedder levantou e foi em direção ao banheiro. Por momentos, pensei que ele estava flutuando, levitando. Ao voltar, disparou uma frase que congelou minha racionalidade e sentidos. Apesar de tempos em tempos este tema rondar meus pensamentos:


D: - Cara. Estou a fim de um suicídio...

Desgedder novamente levou a palma da mão em direção aos lábios e engoliu mais uns comprimidos. Solicitou que o garção deixasse a garrafa de whisky na mesa e continuou:

D: - Falando sério. Não vejo mais sentido na vida. Não tenho inspiração para fazer nada a não ser a minha própria destruição... Não devia ter me aprofundado tanto em teoria quântica. Primeiro foi o encanto com um mundo infinito de possibilidades. Achei genial a frase de Heisenberg: "Vivemos a Era da Incerteza". Porém aos poucos fui percebendo que o homem não tem nada de concreto sobre o universo. Somos joguetes das forças da natureza. Tudo que me ensinaram era apenas distração para desviar meu pensamento da morte.

- Bem, não sei o que vou falar vai produzir resultado no seu animo, na sua vontade - que procura intensamente o nada. Confesso que já passei por um período depressivo violento - após a abstinência de heroína. Não aceitei que me levassem para nenhuma clínica. O  que me ajudou a escapar desta foi a natureza pura, esta que você diz que nos somos joguetes.

D: - Fale... mas não vai adiantar...

- Well, em meio a Tempestades & Tormentos & desejo do Deus-Nada-Infinito, me caiu nas mãos um livro de Schopenhauer, O Mundo Como Vontade e Representação. Schop foi muito influenciado pela filosofia oriental, que entre suas inúmeras passagens de sabedoria discorre sobre a vontade. O Karma seria o ciclo vicioso da vontade. Estamos num ciclo interminável, cada vez que saciamos uma vontade surge outra. Hodiernamente o Mercado soube canalizar - o eterno retorno - para o consumo. O sistema   de 
Palingenesia, tão bem sacado por Nietzsche, virou a filosofia da máquina que tritura os sonhos e escraviza o homem atual, ou seja, o capitalismo e o deus mercado.


D: - Mas, isto só reforça meu desejo do nada.

- Desculpe, já ia me enrolando em  ramificações, mas vou ser objetivo. Schop diz que a única maneira de você driblar a vontade e ter contato com o Ser Verdadeiro é por meio da admiração da natureza pura. Ele menciona também as artes, principalmente, a música como possibilidade de momentos de união com o Sein-an-sich. Tanto foi... que seu herdeiro mais imediato elegeu a música e as belezas naturais do sul da europa como seu trampolim de salvação do grosseiro espirito germânico e da decadente cultura tedesca.

D: - Nietzsche disse: "A vida Sem a Música seria um erro". Falou porque não conhece o que temos hoje... 


- Imagina.. Teria se matado, Ops, não deveria mencionado isto...


D: - Não te preocupe, pois o que você me disser não vai fazer efeito, já tomei uma decisão. Vou cometer suicídio mais cedo ou mais tarde e isto está baseado em teorias, em tudo que aprendi com a Física quântica... Diria que é um suicídio cientifico.   

- Se isso te serve de consolo, já tentei algumas vezes... já que estamos num diálogo franco- alcoólico .. Sempre fui incompetente, talvez por ter tentado a versão feminina. Não sei quantas vezes utilizei soníferos e álcool e sempre acabei acordando em alguma emergência de hospital. 

D: - Veja bem,  o que está acontecendo. Em vez de você tentar me convencer o contrário, sinto que estou te influenciando. Quem sabe vamos para o teu Deus-Nada-Infinito juntos?



- Vou te responder usando a tua especialidade, a física quântica, o mundo é um infinito de possibilidades. Convença-me... 

O dialogo perdurou por mais algumas horas e algumas garrafas de cerveja e doses de whisky. Desgedder usou sua convicção em relação ao suicídio, sua teoria cientifica de automutilação para me convencer. Confesso que depois de meus neurônios serem invadidos por um exercito de moléculas etílicas...vacilei. Porém sabia que o meu principio de auto conservação era mais forte que o de D.  Não sei se isto me transforma em covarde ou herói, mas o que tenho de concreto é o oxigênio que entra nos pulmões, a música de Mahler e o copo de absinto - que me acompanham enquanto escrevo este texto-maxikoan. Quanto a Desgedder faz um mês que não o vejo... certamente, ainda não executou seu projeto cientifico de autodestruição, pois as notícias ruins viajam a velocidade da luz...





MACHADO DE ASSIS:
"Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria"






 

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