quinta-feira, 2 de outubro de 2025

 



Passava os dias mergulhado numa espécie de torpor voluntário, deitado sobre lençóis amassados, embalado pelo aroma suave do chá de maçã que preparava com esmero todas as manhãs. O líquido dourado escorria pela garganta como um bálsamo, e com ele vinha a queda da pressão, uma leveza que o fazia flutuar entre o real e o imaginário. Ao fundo, Beethoven preenchia o silêncio com suas sinfonias densas e melancólicas, criando uma atmosfera de contemplação quase sagrada.

Às vezes, o zumbido de abelhas (Bee) invadia o ambiente — não se sabia ao certo se vinham do jardim ou da própria mente — e o deixava atônito, como se o mundo vibrasse numa frequência que só ele podia ouvir. Era nesses momentos que a realidade parecia se dissolver, e o tempo escorria lento, como mel.A medida que o dia avançava, uma inquietação sutil tomava conta de seu corpo. Levantava-se com esforço, calçava os chinelos gastos e saía em direção ao mercado mais próximo, em busca de cerveja. Não era apenas uma bebida; era um ritual. A caminhada, o tilintar das moedas no bolso, o som da porta automática se abrindo — tudo fazia parte de uma coreografia silenciosa que se repetia dia após dia.

Ao retornar, sentava-se na varanda, o copo gelado entre os dedos, e observava a lua. Não importava a fase: cheia, minguante, nova ou crescente — todas lhe ofereciam um tipo diferente de companhia. Era como se conversassem em silêncio, trocando segredos que só os lunáticos compreendem.

E então, com a noite já avançada, começava a escrever. As palavras jorravam como se viessem de um lugar oculto, um subterrâneo da alma. Para os olhos de outrem, seus textos eram devaneios desconexos, rabiscos sem nexo. Mas para ele, cada frase era uma revelação, uma confissão íntima, um espelho de pensamentos que não ousava compartilhar em voz alta. Não havia lógica, apenas uma alucinação poética, uma dança entre o delírio e a lucidez.

Era nesse caos que encontrava paz. E assim, dia após dia, construía um universo próprio, onde o chá de maçã, Beethoven, as abelhas, a cerveja e a lua eram os pilares de uma existência silenciosa, mas profundamente viva.



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