O convés rangia como um osso prestes a quebrar. O navio, uma silhueta fantasmagórica de ferro corroído, mantinha-se ancorado a poucos metros da sede da MidiaCorp - um cubo de vidro fumê que sugava a luz da noite, refletindo apenas suas próprias entranhas iluminadas por telas fluorescentes. O porto era uma ficção: águas revoltas lambendo pilastras de concreto rachado, como se o mar tentasse engolir a arrogância daquela civilização - que se dizia eterna. A tempestade não vinha do céu, mas das frestas do mundo. Ventos cortantes carregavam vozes distorcidas - manchetes, tuítes, algoritmos em colapso, enquanto coriscos azuis e brancos rasgavam o véu da escuridão, revelando, por frações de segundo, o rosto daquela tormenta: um caos que não destruía, mas desvelava.
Dentro do navio, meu corpo tornou-se partícula. O cíclotron surgiu do nada — ou do centro de tudo —, um anel magnético que me arrastou para uma dança cósmica. Cada rotação acelerava até a fronteira da luz e a matéria ao meu redor esticava-se como um holograma quantico. Nos sonhos que colidiam com as paredes do acelerador, via cidades inteiras se desfazendo em pixels, livros queimando em chamas azuis de servidores superaquecidos e rostos… tantos faces deslizando para o esquecimento como areia entre dedos digitais.
Foi então que o gato emergiu, não da caixa de Schrödinger, mas do próprio vácuo quântico que me engolia. Metade pela existência dubia, metade névoa indecifravel, nem tudo precisa fazer sentido; Um olho brilhando como estrela cadente, o outro opaco como buraco negro. Ele caminhava sobre o abismo entre a consciência e o nada, arrastando uma cauda que deixava rastros de paradoxos: "Se me observas como vida, sou morte adiada. Se me tocas como morte, sou vida suspensa". Sua voz era um zumbido de ondas colapsando. Tentava focar em suas formas, mas a realidade se bifurcava — em uma versão dupla, o gato rugia, feroz e vívido; em outra, desmanchava-se em poeira estelar. A lei física desmoronava. Agora, era é: ser e não-ser dançando um tango de incertezas, enquanto o navio balançava em sincronia com meu núcleo atômico prestes a fissurar.
A tempestade lá fora ecoava a de dentro. Os relâmpagos iluminavam a fachada da MidiaCorp, onde letreiros digitais anunciavam em loop: TUDO SOB CONTROLE. Uma mentira deslavada. Até o tempo ali era líquido — passado e futuro colidindo no olho do furacão presente. O gato, agora sentado sobre uma pilha de livros derretidos, sussurrou sem mover a boca: "Você é o observador e o experimento. O navio e a tempestade. Mas cuidado…" — seu corpo dividiu-se em dois, como imagem refletida em espelho quebrado — "...enxergar demais é tornar-se responsável pelo que não quis ver."
Quando acordei, a tempestade persistia. No ar, um cheiro de ozônio e ironia.
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