sábado, 4 de outubro de 2025

 



Foi a consagração de pisar em dois oceanos: Atlântico e Pacífico, dois espelhos que me devolviam destinos contraditórios.


No Pacífico, a Califórnia erguia suas muralhas de pedra, lavas antigas solidificadas em barragens improvisadas contra a fúria das águas. Mas o mar não se contém — ondas colossais, dignas de Maverick, avançavam como deuses enfurecidos, e só as luzes artificiais ensinavam os banhistas o momento exato de recuar. Poseidon reinventado em sinais elétricos.

O Atlântico, porém, me recebia com mansidão. Ali o corpo se entregava em cadeiras largas, diante de praias infinitas, como se o horizonte quisesse acariciar nossa carne já marcada pelos trópicos. O sol massageava uma pele que guardava em sua memória o peso da miscigenação e o eco da sobrevivência.

No norte, o mito americano nos embriagava. O uísque servia de bússola: não precisávamos de deuses quando o álcool nos lembrava que ainda éramos animais. Era um faroeste existencial onde a salvação se buscava em desertos, montanhas nevadas, cassinos e massacres. Extinguir os indígenas parecia ser o preço do progresso, e muitos aceitaram esse pacto como se fosse inevitável.

Mas no sul, o pé esquerdo — sempre o pé esquerdo — exigia justiça. Ali compreendíamos que a violência contra indígenas e africanos não fora um detalhe, mas a raiz de nossa civilização. Crime contra a humanidade, tatuado no solo e no sangue. O Atlântico carregava em suas ondas o lamento de corpos arremessados ao fundo do mar, uma memória salobra que insistia em sobreviver.

E no Pacífico, a crença persistia: a ilusão de que a individualidade armada poderia equilibrar o mundo, que uma pistola era extensão da liberdade. O velho oeste se eternizava como religião secular, confundindo vingança com justiça.

Entre os dois oceanos, entendi que carregamos um duplo destino: um lado sedento por ordem e vingança, outro clamando por memória e reparação. Entre o Pacífico e o Atlântico, entre o norte e o sul, entre o revólver e a mão estendida — ali, no limite das águas, é que se decide quem realmente somos.



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