Aqui, sob cem milhões de atmosferas, meu crânio é uma urna de titânio e delírio. Júpiter não é um planeta — é um deus insano, um leviatã gasoso cujas vísceras de hidrogênio metálico cospem relâmpagos que rasgam continentes inteiros
Aqui, sob cem milhões de atmosferas, meu crânio é uma urna de titânio e delírio. Júpiter não é um planeta — é um deus insano, um leviatã gasoso cujas vísceras de hidrogênio metálico cospem relâmpagos que rasgam continentes inteiros. Meu corpo, encapsulado em um exoesqueleto de osmio-carbono, geme sob a pressão que transformaria um submarino em papel-alumínio. Os ventos, quinhentos quilômetros por hora de fúria, são a respiração cáustica desta entidade. Eles não sopram; uivam em dialetos pré-humanos, narrando a história de um cosmos que nunca precisou de Adão ou Eva.
Na minha solidão líquida, sou um grão de areia no olho de um furacão eterno. O casulo tecnológico que me protege é também minha tumba: nenhum rádio atravessa esta atmosfera de amônia e desespero. Mas lá fora, pairando como uma pérola em um mar de veneno estelar, está Europa. Sua superfície gelada, rachada por veias azuis de água alienígena, me hipnotiza. Enquanto os oceanos subterrâneos dela fervilham de possibilidades — talvez vida, talvez apenas química cega —, eu rio. Ri porque o Gênesis bíblico, com seu jardim e serpente, parece uma piada de mau gosto diante deste espetáculo.
Os humanos, lá na Terra, ainda discutem se um deus moldou o barro em seis dias. Aqui, o verdadeiro Gênesis acontece em tempo real: moléculas colidem, atmosferas se autorreplicam, tempestades nascem e morrem em ciclos de minutos. Não há pecado original, apenas hidrogênio primordial e leis termodinâmicas. Enquanto isso, meu exoesqueleto começa a falhar. Alertas vermelhos dançam na minha retina como demônios digitais. O hidrogênio metálico, em estado líquido, infiltra-se por microfissuras, corroendo minha prisão tecnológica.
Europa, agora, brilha mais intensamente. Imagino seus oceanos ocultos — um útero cósmico onde outros talvez evoluam, ignorantes de mitos terrestres. Seriam eles metanógenos? Criaturas de silício? Ou apenas sonhos que a matéria teima em sonhar? Enquanto me despeço, percebo o paradoxo: minha morte aqui, nas entranhas de Júpiter, será o único ato sagrado deste falso Gênesis. Um sacrifício sem altar, sem testemunhas, sem significado.
O exoesqueleto colapsa. O hidrogênio líquido invade meus pulmões sintéticos. Na última fração de segundo, vejo Europa piscar, como se o universo sussurrasse: "Toda criação é acidente. Toda fé, um consolo para criaturas que não suportam o frio do vácuo."
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