quarta-feira, 30 de outubro de 2024

 

 



A Orelha de Cristiano, o Luso.
Van Gogh Surfista.





Caminhava pelas falésias urbanas erodidas pela ação humana deletéria, na realidade, um barranco íngreme artificialmente decorado com grama e plantas exóticas. Observava que no sopé havia empresas de mídia, com seus letreiros vanguardistas, anunciando as maravilhas de uma atmosfera artificial, que só existiam nas telas coloridas e tecnológicas do marketing. Varias escadas em forma de caracol, concreto e aço, davam acesso a comunicação entre a calçada em que meus pés pisavam e o terreno onde estavam estabelecidas as hipermídias. Em uma das escadas notei uma menina e uma senhora com idade avançada. Subiam em direção a calçada. Para minha surpresa, as reconheci. Tratava-se da mãe do meu ex melhor amigo e sua neta.  D. Josefina também me percebeu:

- Oi, meu filho, como vai?

Logo começamos um colóquio. Lembramos de seu filho falecido e de nossa amizade. Dona Josefina, sempre segurando a pequena mão da neta, não conseguiu deter as lágrimas. Dei um abraço para consolar sua dor revivida, mas fui tomado de surpresa quando Dona J. retirou de sua bolsa um vidro e colocou em minhas mãos. Não era um simples vidro, mas sim um recipiente cheio de formol com uma orelha adornada com um piercing. Não tive dificuldade, mesmo impactado pelo inusitado, para distinguir que se tratava da orelha de Cristiano, o luso, meu ex melhor amigo. Consegui conter a repugnação  da cena vangoniana-stephenkinguiana. Depois Dona J. apertou minha mão e com uma voz chorosa e incisiva fez um pedido:

- Meu filho, você era o melhor amigo de Cristiano, o luso. Peço-lhe um grande favor... Não negue para esta velha senhora que perdeu uma parte de sua existência. Ainda bem que você conseguiu sair do caminho da drogadição, infelizmente meu filho pereceu nesta senda...

"Varias vezes tentei demover C., o Luso, da vida barra pesada, mas não tive sucesso. Antes do seu falecimento o encontrei num bar tomando absinto, lendo a poesia dos malditos franceses e cheirando neve" - pensei, enquanto ouvia a velha senhora. Seus olhos dilatados  mostravam o amargor, o sofrimento pela perda. Sua netinha parecia uma indiozinha perdida na selva humana. Parecia não estar entendendo o que acontecia.

- Dona J., como a senhora conseguiu esta orelha...

D. Josefina me interrompeu. Segurou novamente minhas mãos com o rosto suplicante e continuou:

- Meu filho, não me questione, apenas ouça. Está completando cinco anos desde que Cristiano se Foi. Vou resgatar sua memória, prestar-lhe uma homenagem. Estou vindo da Mídia-Memory, uma filmadora especializada em produzir  vídeos sobre a vida de pessoas que alguém quer homenagear. Pedi que fizessem um roteiro sobre a breve existência de Cristiano. Aprovei e achei lindo a forma que desenvolveram a história de C., porém dependo de você para completar este culto.

- O que posso fazer D. Josefina?

- É simples meu filho. Leve este vidro com a orelha de C. até o mar, onde vocês costumavam surfar. Lembro de vocês dois arrumando os equipamentos de surf com entusiasmo. A expressão de felicidade em seus rostos. Peço que preste esta cerimonia. Coloque no mar a orelha de Cristiano, seria como resgatar  seu tempo saudável, de felicidade. Não estou com insanidade alguma, mas um médium  ouviu a  voz de C. e ele fez este pedido...

Não podia dizer não para a velha senhora, afinal Cristiano, o luso, tinha sido meu melhor amigo. Quando concordei com a missão, a fisionomia de Dona J. irradiou satisfação. Dei mais um abraço, passei a mão na cabecinha loura da netinha e despedi-me... 






Olhei para o outro lado da rua, com a orelha dentro do vidro e o vidro dentro da sacola. Vi um simpático bar com mesas na calçada. Pedi uma cerveja para o garçom. Comecei a saborear a cevada. No segundo copo, ouvi um assovio e meu nome vindo da parte interna do bar. Eram Cireneu e Calcides. Convenceram-me a sentar junto a mesa em que bebiam whisky e cerveja.  Eles já estavam altos. Misturavam goles do malte escocês com profundas  absorvidas de cerveja. Calcides e Cireneu eram amigos dos velhos tempos, também conheciam C., o Luso, mais do que conheciam, ainda estavam na velha estrada de chapação. Deixei-me envolver pela atmosfera criada, logo comecei a compartilhar o whisky. Quando você concede um dedo o corpo está comprometido. Fiquei no nível alcoólico de C. & C. e contei o encontro que tive com D. J. Do bar empreendemos uma viagem de taxi até a casa de Calcides. Concordamos fazer um jantar e uma homenagem póstuma ao nosso amigo Cristiano, o Luso. 




Calcides abriu a porta do seu moderno refrigerador e sacou long-necks. Ele foi quem propôs fazer uma janta em homenagem a C., o luso. Com o orgulho potencializado pelo álcool, mostrou um diploma de chefe de cozinha. Rimos muito, aliás eram gargalhadas sem controle. Deixamos ele ir até a cozinha e preparar o "Prato In Memoriam de C., o Luso". Fiquei com Cireneu atirado no sofá ouvindo The Beach Boys. Calcides entrou freneticamente na sala e colocou algumas carreiras de neve em cima de uma mesa de vidro. Consumimos avidamente. E assim se sucedeu durante algum tempo.
Calcides voltou para cozinha uivando como um coiote solitário. Quando retornou trouxe uma especie de fogareiro e uma frigideira e uma garrafa de conhaque jerez de la frontera. Realmente, Calcides tinha habilidades gastronômicas, apesar  das pesadas doses de álcool e neve. Começou a flambar o acepipe dentro da frigideira. Começamos a devorar o prato especial,  ao som da quinta de Beethoven. Terminamos o banquete. Calcides desligou o som e disse que faria um discurso em homenagem a Cristiano, subindo na mesa de vidro, entoou a homenagem:



Excelentíssimos Senhores:

Não estará ele entre nós? Não ouvirá o meu chamado? Tão viva é sua lembrança. Tenho a sensação de vê-lo, de senti-lo dentro de nós. Não acredito que ele se foi, pois ele está presente em nossa memória. Levanto esta long neck em sua homenagem. Digo estas palavras que li no epitáfio de Bob Marley, que reflete a vida de Cristiano:


"Não viva para que a sua presença seja notada,
mas para que a sua falta seja sentida..."


Enquanto esteve presente entre nós foi um cometa, mas hoje sabemos que é uma estrela de  primeira grandeza. Senhores, beberemos mais um gole, tomaremos mais varias garrafas... Beberemos todos os estoques da cidade em homenagem a Cristiano, o Luso... Nada será suficiente para lustrar sua memoria... Vinho, whiski, vodka, absinto e pó que ao pó voltarás... Senhores, encerro este longo discurso em memória a C., o Luso, inspirando-me no dogma da Transubstanciação da Igreja católica, do discurso do pão e do vinho de Jesus Cristo. Prestem atenção senhores nas minhas últimas palavras:

O Acepipe da  orelha que nós comemos é carne de Cristiano para a salvação de nossa existência, para que ele esteja sempre conosco...
O conhaque jerez de la frontera com o qual flambei a orelha de Cristiano será nosso sangue para que ele seja eterno em nossas vidas...

E encerro esta cerimônia com o Réquiem de Mozart....


 






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