sábado, 13 de julho de 2024

  

Crônica de uma rua desaparecida




Depois de quase um ano internado em quatro paredes publicas, resolvi caminhar na rua úmida. O gato tipo tigre, arredio, se aproximou devagar - desfez o paradoxo. Deixou colocar a mão na cabeça malhada. O grés e o basalto vertiam água nas lajes vizinhas e conhecidas. Os pulmões por osmose condensavam o ar que entrava pela boca e o nariz. Os carros desciam o aclive mais silenciosos do que costumeiramente. Não havia transeuntes, apenas eu caminhando com roupas esgrouvinhadas catadas de um pretérito não tão distante.  Era um anúncio de um novo normal dominante contra o ímpeto de outrora. 

Já era tardinha, pré noite. Os dedos róseos de Homero pincelavam o fundo azul do cerúleo. Uma lua islâmica pregada na abóbada destoava dos sinos cristãos que badalavam, enquanto descia o declive da quadra que prometera tentar circundar. A calçada refletia a luz dos postes nas pequenas poças que se sucediam. A seta do tempo não inverte a direção. Nada seria como antes, estava condenado pelas reflexões pretéritas que relembravam imagens, fatos & outros que tais. O fluxo indissolúvel da existência apesar de amargas atiçavam o questionamento acerca da vida. A consciência reflete a matéria & vice-versa, neste sentido somos imortais, não temos que nos preocupar com as picuinhas da religião sobre céu & inferno, vida após morte. Somos natureza & a natureza é deus como dizia Baruch  Espinosa.    

A chuva persistia, mas não me importava. O paradoxo se desfez, e eu me senti parte daquele momento, daquela rua úmida e silenciosa. Os carros continuavam a descer o aclive, mas agora pareciam transportar segredos e histórias que eu estava prestes a descobrir.

Homero com seus dedos pintava o céu com cores que só ele conhecia. A lua islâmica e os sinos cristãos criavam uma harmonia inesperada. Eu, com minhas roupas blasés, era um observador privilegiado dessa dança entre o tempo e a memória.

A vida, como a água nas lajes, fluía inexoravelmente. Reflexões pretéritas se misturavam com o presente, e eu me perguntava sobre o sentido de tudo. Mas talvez a resposta estivesse na própria experiência, na sensação da chuva na pele, no olhar do gato, na imortalidade da consciência-matéria.

E assim, caminhando naquela tarde-noite que prometia um novo normal, eu me senti parte da natureza, parte de algo maior. Não precisava temer o céu ou o inferno, pois já estava num paraíso circular. Como Spinoza diria, é na conexão com o todo que encontramos a divindade...




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