ZINGUIST - THE BEGGAR
Porto Alegre - Zinguist , mendigo, 17:00 horas, cinquenta centavos, um litro de cachaça ingerido, sem esperança, procurando abrigo, seis graus centigrados, roupas maltrapilhas, um saco de lixo com vestimentas surradas, um par de tênis furado, dois SDR, milhões de bactérias, olhos cansados...
Chegando no albergue municipal. Tentando uma vaga entre milhares que esperavam do lado de fora. Cabelos empastados de óleo, secretado do seu crânio azeitado, que se enroscavam na sua barba semestral-grisalha. Seu corpo exalava um odor acre. Sua senha fora sorteada, era uma vaga para cada dez. Houve um pequeno tumulto no protesto dos que foram eliminados na roda da fortuna....
Despediu-se dos dois companheiros de caminhadas - que se tornaram sua família ao longo do tempo de infortúnio compartilhado. Os S.D.R. ficaram olhando o amigo entrar pela porta. Os olhos de Z. lacrimejaram, pois não gostava de ficar longe de seu núcleo familiar. Uma toalha já desgastada o recepcionou. O banho foi frio, gélido, mas era essa a regra para a estadia no albergue. Sentou-se junto a mesa e saboreou o sopão servido quente, fumegando legumes no qual se destacava o repolho. O colchão o esperava para uma noite de sono que há muito tempo não dispunha. O cobertor aliado ao alimento fez sua endotermia subir alguns graus, proporcionando um pouco de conforto na derme, nas veias, no sangue, nas vísceras, chegando até os ossos....
A confortabilidade não durou muito tempo, sua maior glândula acusava a abstinência alcoólica. O figado protestava aquele lapso sóbrio, de beatices antietílicas. Não queria saber das normas rígidas do abrigo, leis eram para os fracos, os resignados, os medíocres - que se conformam com a volúpia freada. Era uma luta desigual, Zinguist sofria as estocadas, os jabs, a potente direita e o direto de esquerda. Sua glândula batia impiedosamente como ele fosse um sparring sem aparelhos de proteção. Z. virava-se para esquerda, para direita, suava sangue, líquido amarelo, sua saliva misturava-se a uma água ácida fazendo um fluxo na boca junto com os dentes podres. Enfim o nocaute:
-ZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZ....
A noite passou. Seis horas. O bulício dos carros, dos ônibus entravam pela frágil estrutura do abrigo; o guarda municipal trinou o apito de som agudo que penetrava na alma cansada de Z. O café preto nas canecas de louças lascadas exalavam o vapor, pães dormidos estavam de prontidão ao lado. Foi tudo muito rápido, o café e o pão tiraram o fel que havia corrido no leito de sua boca durante a noite. Pegou o saco de lixo, colocou nas costas e atravessou a grande porta de ferro que o separava da liberdade. Estava muito frio, colocou a mão no saco e tirou uma boina com o rosto de Che Guevara, resto de uma utopia que alguém jogara no lixo.
Seus amigos vieram correndo, sacudindo a cauda. Novamente a família estava reunida. Z. seguiu o itinerário de rotina a procura de latas de refrigerantes e cervejas. Como um autômato catava os vasilhames de alumínio e os amassava com os pés e ensacava. Os S.D.R.s farejavam migalhas, restos de comidas nos cruéis contêineres que impossibilitavam a sua retirada, porém tinham a ajuda de Z. que os abria e jogava as sobras dos moradores nos bairros nobres. A manhã de inverno e nevoa havia transcorrido. Z. contabilizou o produto de seu labor. Seus lábios escamados sorriram timidamente, mas satisfeitos, já havia o suficiente para comprar um pão e uma garrafa de cachaça.
A tarde já havia adentrado em mais um dia de niilismo. Nada podia demover as engrenagens do destino. Z. era filho de pais desconhecidos; passara a maior parte de seus trinta anos em abrigos e reformatórios de menores. Foi nestes lugares que ganhou o diploma de homem de rua, após longo anos de surras e castigos. Mais latas de alumínio, mais verbas, mais cachaça e assim terminou o dia. Bebeu demais - duas garrafas da água de consolo que o levaram para uma praça no centro da cidade. O inverno-noite veio com mais rigor que a noite passada. Z. se enrolou em plásticos e jornal, deitou sob a marquise da casa de manutenção da praça.
O HOMEM IMOLADO
Passava das vinte e três horas, quando um transeunte viu uma chama no interior da praça. Correu até o fogo. Deu um grito de horror, viu Z. ardendo em labaredas. Tentou controlar a situação, mas já era tarde. Não teve outra escolha senão chamar a polícia. Depois de duas horas ela chegou. O policial sacudiu a cabeça e falou para o transeunte:
- Só esta semana já foi o terceiro caso. Este não teve sorte. Olhe as garrafas PET perto do corpo queimado, provavelmente elas continham gasolina.
No dia seguinte o rabecão do Instituto Medico Legal levou o corpo.
Os formulários foram atestados, as formalidades preenchidas e então o corpo foi levado para ser enterrado na vala comum do cemitério municipal.
ATESTADO DE ÓBITO
REPUBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
COMARCA DA CAPITAL
CARTÓRIO DE REGISTRO CIVIL
Zelite Burou Crátic
ESCRIVÃO DO REGISTRO DE PESSOAS NATURAIS
CERTIDÃO DE ÓBITO
DISTRITO CENTRALMUNICÍPIO E COMARCA DE PORTO ALEGRE - RS
Certifica que no Livro, 666, folhas 2012, aos vinte e dois dia do mês de outubro do ano 2012, encontra-se lavrado o assento de Zinguist Beggar, falecido em 20 de outubro do ano de 2012, do sexo masculino, de cor parda, profissão não possuía; natural do Estado do Rio Grande do Sul, cidade Porto Alegre, estado civil solteiro, pais desconhecidos, declarante a Prefeitura de Porto Alegre, atestando o óbito firmado pelo juiz Escol da Gema que deu como Causa Mortis queimaduras de terceiro grau em mais de noventa por cento do corpo. O sepultamento ocorreu 21 de outubro de 2012 no cemitério para indigentes.
OBS: O morto não deixa filhos e desconhece-se qualquer vinculo familiar, a não ser dois S.D.R. que o acompanharam até a entrada do Cemitérios dos Indigente.
Não deixa bens a inventariar, pois tudo o que possuía era seu corpo e milhões de bactérias e vírus que conviviam harmonicamente na sua biologia.
Extraímos a referida certidão e damos fé.
Juiz Escol da Gema
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