sexta-feira, 17 de outubro de 2025

 

O Hospital Invisível





Era sexta-feira — ou talvez sábado. O tempo já não obedecia aos ponteiros. Eu estava imerso em tradições judaicas, sem saber ao certo como havia chegado ali. O ambiente, antes municipal e neutro, transfigurou-se sob o domínio de símbolos e rituais que me eram estranhos. A respiração tornou-se rarefeita, como se o ar tivesse sido privatizado.

Minhas veias, conectadas por agulhas, recebiam antibióticos de origem obscura, vindos das engrenagens da Big Pharma. Ao redor, surgiam danças hebraicas, refeições cerimoniais, cânticos — e eu, dopado, observava tudo como um estrangeiro dentro do próprio corpo. Aquelas expressões culturais, tão distantes da minha formação, pareciam um teatro delirante encenado sobre minha maca.

Minha boca secava. Por dentro, o deserto do Oriente Médio se instalava. Um homem turco se aproximou e me ofereceu um copo de água judaica. Aceitei, sem saber que aquele gesto simples carregava um peso simbólico maior que minha lucidez. Era como estar preso no castelo de Kafka, recebendo doses sutis de envenenamento institucional.

A música do silêncio preenchia o ambiente. Não havia hora, nem data. Os diálogos com os funcionários da casa de saúde eram fragmentados, como se falássemos línguas incompatíveis. Cada conversa me empurrava para o estreitamento da existência.

Às vezes, eu parava de respirar. Brutamontes me imobilizavam, amarrando meus braços às grades de ferro da maca. Dias se passavam enquanto eu tentava me mover. Era uma sinfonia macabra, sufocando qualquer esperança de viver. Ainda assim, em alguns momentos, encontrava respiros rarefeitos — mas a ideia de desistir rondava como um fantasma paciente.

O sistema havia decidido: eu era inútil para o mecanismo capitalista. A mão invisível do mercado apontava para mim, e por telepatia a meritocracia, icone do sistema neoliberal, reverberava em meus neurônios:

— Você já alimentou nossa engrenagem. Cumpriu sua função na timeline da subordinação. Agora, faça como o esquimó: afaste-se e morra com dignidade. Não onere a sociedade.

E ali, entre agulhas, danças e delírios, compreendi que o hospital não era apenas um lugar físico — era o espelho de um mundo que já não sabia cuidar, apenas administrar.


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