sexta-feira, 31 de outubro de 2025


A Flor Sagrada



Era fim de tarde quando o céu começou a se dissolver em tons de âmbar e violeta. O ar parecia suspenso, como se o tempo hesitasse em seguir seu curso. Foi então que ela surgiu: uma borboleta imensurável, de asas translúcidas e pulsantes, como se carregasse em si o batimento do universo. Sem hesitar, pousou sobre uma flor de pétalas amarelas, rajadas de rubro, que crescia solitária no centro de um campo silencioso.

Ao vê-la, senti um torpor inexplicável. Meus sentidos se embaralharam, e como guiado por uma força ancestral, deitei no chão. Encostei a cabeça no caule mavioso da flor, que parecia vibrar com uma energia que não era deste mundo. A terra sob mim respirava. O céu, agora líquido, escorria em cores que não tinham nome.

Borboletas começaram a sair da flor como se fossem emissárias de uma nave-mãe. Elas me guincharam para o ar, e eu flutuei — não como quem voa, mas como quem é dissolvido. A realidade se desfez em partículas. O real tornou-se gasoso, fluido, um lado oculto da moeda que os sentidos humanos sempre proibiram.

Não havia mais universo. Nem paralelos. Tudo era uma unidade pulsante, sem fronteiras, sem tempo. Os eventos e fenômenos não aconteciam — eles simplesmente eram. As causas haviam sido abolidas. O passado, o futuro, o sentido: tudo se tornara obsoleto. O que restava era um estado de pura presença, onde a compreensão não era necessária, pois não havia nada a compreender.

Abracadabra.

A palavra ecoou em minha mente como um feitiço que não precisava de magia. Sentíamos — todos nós, os dissolvidos — a fluidez do que antes era incompreensível. E mesmo desprovidos de qualquer conhecimento, éramos atravessados por uma força maior. O deus-natureza de Espinosa nos observava do trono fincado na flor, lapidando suas lentes cósmicas com paciência infinita

Ele não falava. Não precisava. Seu olhar era feito de raízes e vento. Cada pétala da flor era uma página de um livro que nunca foi escrito. E ali, naquele instante eterno, compreendi: a flor sagrada não era uma planta. Era um portal. Um organismo de consciência. Um convite para abandonar o humano e tornar-se parte do todo.

Quando voltei — se é que voltei — o campo estava vazio. A flor havia desaparecido. Mas em meu peito, pulsava uma lembrança que não era minha. Um fragmento de eternidade. 


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